Por: Fabio Fernandes de Lima
Comecemos falando dos aedos, verdadeiras enciclopédias vivas que preparavam-se para ver o oculto, o invisível, a sabedoria e luz dos deuses através da música e da arte. Homero certamente foi o maior dos aedos, ainda que este tenha sido um nome próprio, ou mesmo que esta seja a nomenclatura utilizada para designar um grupo distinto de poetas, torna-se totalmente irrelevante, dada a genialidade das obras atribuídas a este nome. Importante de fato, é o papel que este legado possui até hoje de influenciar a indústria artística e sua segmentada diversidade, sobretudo o Cinema clássico de ficção científica.
Damos o nome de “clássico” a tudo aquilo que tem seu valor posto à prova pelo tempo, então o que dizer de Homero ?
O cinema sempre teve a literatura (sobretudo a clássica) como fonte de aprendizado, seja colocando na tela suas histórias, seja recriando seu proceder narrativo. Com Homero o cinema “aprendeu a fazer uso do flash-back e da cronologia,” aprendeu também que seus personagens e estilo podem ser adaptados e transferidos para qualquer época, sem perder seu caráter épico.
Foi com adaptações das histórias de ficção científica no início do século XX que o cinema viveu uma revolução, até então nunca experimentada. Escritores como Julio Verne, H. G. Wells, Arthur Conan Doyle e Edgar Allan Poe, tiveram suas obras adaptadas para cinema, dando maior popularidades a esses autores, promovendo a volta de personagens com condutas memoráveis e intervenções de cunho sobrenatural, como era práxis nos escritos épicos gregos.
Podemos propor então um período com intuito de remontar a fase entre o século XIX, quando a consolidação literária dos autores citados tem seu surgimento, e os primeiros 30 anos do século XX, base indiscutível do cinema sci-fi.
Dos anos 30, aos anos 60, filmes, revistas e livros de ficção científica inundaram o mercado americano e europeu, culminando mais tarde na New Wave da ficção científica, situada entre 1960 e 1980. Desde os anos 80 a ficção científica entrou na fase do Cyberpunk, cujo filme Matrix (1999), baseado na obra de Willian Gibson e dirigido pelos irmãos Wachowiski faz parte. Neste filme temos o herói Neo, intitulado como o “escolhido”, lutando contra uma inteligência artificial que se auto-denomina “a Matriz”, que aos moldes da épica intervem na ordem das coisas e no destino dos humanos.
Neo carrega peculiaridades que o assemelham aos heróis criados por Homero, suas fraquezas e crenças em diversos momentos nos lembram os feitos de Odisseu, Neo assim como Odisseu, ignorava inicialmente em certos aspectos sua natureza humana, e encarava o sobrenatural com desdém. Como se dá em toda épica de guerra, Neo perde entes queridos e se vê obrigado a compreender que numa guerra não existem vencedores, e tudo aquilo que foge do entendimento limitado do homem deve ser respeitado.
Temos um caso curioso também em Flash Gordon personagem que viaja a um mundo perfeito chamado Mongo, muito similar a Feácia, lugar onde Odisseu se refugia durante sua trajetória na Odisséia. Em Mongo, Flash encontra uma civilização que convive racionalmente num mundo belo e equilibrado. O personagem criado por Alex Raymond em 1934, luta com seus amigos ao lado do príncipe Barin contra o cruel tirano Ming, que tomara o trono do príncipe, apoderou-se da parte mais avançada de seu planeta.
No futuro representado em 1964 na série Jornada nas Estrelas de Gene Roddenberry, a Terra do ano de 2245 é apresentada de uma maneira utopicamente bucólica, despoluída, racional, livre do dinheiro e suas implicações capitalistas, onde quase todos são devotados à pesquisa e a diplomacia com os demais povos do Universo. Nessa Terra livre de preconceitos e unificada em seus propósitos, vemos novamente o retrato de uma Feácia idealizada por Homero. As naus por sua vez são substituídas por gigantescas naves espaciais, onde destaca-se a USS Enterprise, operada por sua tripulação multi-étnica, onde seus tripulantes obedeciam pragmaticamente as leis da federação.
No filme Guerra dos Mundos, adaptado da história de H. G. Wells, uma guerra travada entre homens e alienígenas cujo desfecho genial remete seu contexto à épica, sobretudo no que se refere aos modos como uma guerra pode ser vencida de uma forma aparentemente simples. A guerra na história de Wells é vencida pelos humanos, quando de forma imprevista os aliens são infectados com o vírus da gripe (de certa forma inofensivo para os terráqueos, porém letal para sua raça), essa infecção se assemelha a derrocada de Tróia quando o “cavalo de madeira” é recebido inocentemente através de seus “supostos portões intransponíveis”.
Julio Verne, que tornou-se um dos autores mais traduzidos do mundo por conta da repercussão de clássicos como Viagem ao Centro da Terra e Mil Léguas Submarinas, contribuiu enormemente para a criação de inúmeros clichês no universo sci-fi . Seu modo de ambientação riquíssimo em detalhes, tornou-se modelo para as gerações de cineastas que viria mais tarde. Em Viagem ao Centro da Terra, que foi novamente adaptado em 2008, um pesquisador se vê fadado a conviver com civilizações estranhas e criaturas jamais imaginadas, o Odisseu de Homero também se viu em situações semelhantes, quando enfrenta o gigante Ciclope Polifemo, e perde sua tripulação para as criaturas mitológicas Cila e Caríbde.
Em 1978 um cineasta (nessa época iniciante), chamado George Lucas, coloca nas telas aquilo que viria a ser um dos maiores fenômenos cinematográficos de todos os tempos. Após uma série de diálogos com o mitólogo Joseph Campbell, Lucas cria a epopéia moderna mais lucrativa e que conta com a maior legião de fans jamais vista até hoje:
Star Wars, filme que rendeu ainda outros cinco longa-metragens, e um conglomerado de produções, numa gama surpreendente de segmentos como HQs, livros, curta-metragens, desenhos animados e atualmente uma série animada em 3D, sem contar os demais produtos que remetem a franquia. A épica estelar de Lucas conta a história de Anakin Skywalker, um guerreiro monge de uma antiga tradição chamada Jedi (leia-se jedai).
Os Jedi são adeptos da Força, interagindo com a mesma sem tirar proveitos mundanos ou em beneficio próprio. A Força é a energia vital que compõe todos os elementos e é onisciente, onipresente e onipotente. Aqueles que por ventura se apaixonam pela Força buscando alcançar o poder máximo sem qualquer escrúpulo são chamados de Sith, ou adeptos do Lado Negro.
Os Jedi possuem as mesmas atitudes políticas, bem como alguns princípios filosóficos do homem helênico, reúnem-se num conselho deliberativo e defendem uma república. Destacam-se nessa épica espacial figuras fantásticas como o velho monge jedi Yoda, seu pupilo Luke e o Lorde Negro Darth Vader, que numa reviravolta num dos filmes, abandona o Lado Negro da Força para salvar Luke (seu filho) e trazer equilíbrio à Força. É bom lembrar que tais peripécias são semelhantes as correntes peripécias da épica homérica.
Um filme cultuado pelo underground da ficção científica é a Obra-prima de Frank Herbert (1920 – 1986), Duna, tem o embasamento curioso de criar um amálgama entre passado e futuro, futuro esse que se assemelhava a Antiguidade Clássica no que concerne ao emprego de elementos mágicos e maravilhosos. Nesse filme temos desde guildas de navegadores e linhagens da nobreza, até sacerdotes visionários, onde até mesmo o nome Atreydes (semelhante a atreu), designado a uma das tribos do deserto de Duna, parece ter sido “roubado” de Homero.
Poderiam ser citados aqui outros ricos exemplos, mas eles se perdem dada a evolução do cinema e a abrangência do assunto.
Há quem diga que o cinema Sci-Fi é a nova Mitologia. O que se sabe é que isso só poderá ser respondido com clareza, talvez, apenas pelas próximas civilizações, que se verão a cargo de fazer deste julgamento. Mas é certo dizer que a ficção científica cinematográfica interage com as mesmas forças místicas, satíricas e talvez utópicas que a Literatura Clássica nos propôs, e produziu um corpus com inúmeras perspectivas para contar histórias e narrativas que numa busca de imitar os clássicos épicos, acaba por nos conceder muito mais que entretenimento.
Seria essa a nossa forma de dizer :
– Longa vida a Homero !